A manutenção dos juros em níveis elevados e os efeitos das cheias no Rio Grande do Sul devem dar novo impulso às recuperações judiciais no país, que já vinham batendo recordes. Especialistas consultados pela Gazeta do Povo não descartam a possibilidade de uma marca inédita de pedidos de recuperação neste ano.
Dados da Serasa Experian indicam que, em 2023, houve 1.504 pedidos de recuperação judicial, o número mais alto desde 2020. No primeiro trimestre, as empresas realizaram 501 requisições, o maior número para um início de ano desde o começo da série histórica, em 2005.
Desde o início do ano, a frequência dos pedidos tem acelerado. Após um crescimento de 68,7% em 2023, o ritmo de avanço em 12 meses subiu para 77,3% ao fim do primeiro trimestre. Esse indicador está em alta há 15 meses seguidos e é o maior desde junho de 2017.
Um outro estudo realizado pela RGF Associados, consultoria especializada em estruturação empresarial, mostra que, ao fim do primeiro trimestre, havia 4.203 matrizes de empresas de pequeno, médio e grande porte em recuperação judicial.
Isso representa um incremento quase 4% em relação ao último trimestre de 2023. “O aumento se deve a uma questão crítica: ainda temos altas taxas de juros”, afirma Rodrigo Gallegos, sócio da consultoria.
Luiz Rabi, economista sênior da Serasa, adverte que uma combinação perigosa está em jogo para as empresas: taxas de juros elevadas, alta inadimplência do consumidor e baixo crescimento econômico. “É uma situação semelhante à vivida em 2016, no auge da recessão. Este ano, deveremos ter um recorde no número de recuperações judiciais”, prevê.
Juro alto afeta solvência de empresas e mantém recuperações judiciais em alta
A decisão do Banco Central de reduzir o ritmo de corte da taxa Selic, com divisão entre os diretores indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e pelo atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), frustrou expectativas do setor produtivo de uma redução mais rápida nos juros.
Até então o Comitê de Política Monetária (Copom) vinha baixando a Selic em 0,5 ponto por reunião, mas no último encontro o corte foi menor, de 0,25 ponto. E a ata da reunião não indicou se haverá nova redução neste mês.
Investidores acreditam mais na manutenção da taxa do que em nova redução, a julgar pelas negociações de contratos de opção de Copom – na quinta-feira (6), elas indicavam que a chance de o BC manter a Selic em 10,5% ao ano é de 85%.
No boletim Focus, que compila apostas de bancos, corretoras e consultorias, a mediana das projeções ainda indica um corte de 0,25 ponto na próxima reunião. Porém, não se espera mais nenhuma redução depois dele: a expectativa é de que a taxa básica feche o ano em 10,25%.
Gallegos destaca que taxas Selic próximas de 10% ao ano ainda são muito altas para o custo financeiro de uma empresa. “Os bancos vão querer pelo menos isso, mais um spread um pouco maior, além dos adicionais de risco de cada empresa”, explica.
Ele lembra que, até abril, a expectativa era de redução mais acelerada da taxa Selic, o que permitiria um maior número de renegociações e maior abertura das instituições financeiras para a liberação de crédito. Agora, projeta-se que o nível de recuperações judiciais se mantenha estável.
O sócio da consultoria ressalta que, com a Selic nesse patamar, o crescimento do número de empresas em recuperação judicial deve continuar. Uma queda mais significativa dependerá de juros menores. “À medida que as taxas de juros caem, espera-se também uma redução nas entradas em recuperação judicial.”
Rabi, da Serasa, observa que, diante do ritmo mais lento de cortes na taxa Selic, as empresas se sentem mais pressionadas. “Uma Selic em dois dígitos é extremamente alta para uma economia que cresce cerca de 2%. Isso gera um custo financeiro elevado às empresas, impactando sua solvência financeira.”
Tragédia no Rio Grande do Sul agrava o cenário
Um fator adicional que deve impulsionar o aumento de pedidos de recuperação judicial é a tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul. A Federasul, que reúne entidades empresariais do estado, estima que serão necessários de R$ 110 bilhões a R$ 176 bilhões para reconstruir a infraestrutura.
O vice-presidente e coordenador da divisão de economia da Federasul, Fernando Marchet, aponta que, por causa da tragédia, haverá uma tendência de aumento do endividamento das empresas afetadas pelas enchentes. "Temos uma realidade em que muitas das garantias que as empresas davam para os bancos estão literalmente embaixo d'água", diz.
A queda na atividade econômica decorrente das inundações piora a situação. “As empresas não conseguem realizar vendas e as pessoas encontram dificuldades para obter emprego”, diz o economista da Serasa.
Levantamento da RGF Associados mostra que o Rio Grande do Sul é, proporcionalmente, o oitavo estado com mais empresas em recuperação judicial. São 2,36 por grupo de mil. Eram 337 empresas nessa situação no fim do primeiro trimestre, antes da catástrofe, o que já representava um crescimento de 3,7% em relação ao último de 2023.
A consultoria aponta que, no Brasil, os maiores números de empresas em recuperação judicial pertencem aos setores de incorporadoras de empreendimentos imobiliários (268 casos, ou 3,2 por mil empresas), holdings de instituições financeiras (252 casos, ou 2,4 por mil) e construtoras de edifícios (202, ou 3,2 por mil).
Construção é o setor com mais empresas em recuperação judicial
“Construtoras e incorporadoras são setores muito cíclicos. Eles têm uma grande necessidade de caixa para investimento e um ciclo financeiro extenso. Desde o início de um projeto até a entrega efetiva da obra, transcorrem de dois a três anos”, enfatiza Gallegos, da RGF.
Outro setor que enfrenta desafios é o agronegócio. A Justiça tem equiparado produtores rurais a empresas, concedendo-lhes recuperações judiciais. Somente entre os dedicados ao cultivo de soja, são 11,8 por grupo de mil em recuperação judicial, um número mais de seis vezes superior à média nacional. Na criação de bovinos de corte, são 8 por grupo de mil em recuperação judicial.
Comércio é setor que mais cresce em pedidos de recuperação judicial
Um estudo da Serasa Experian mostra que o setor com o maior aumento no número de pedidos de recuperação judicial foi o comércio, com um crescimento de 112%. Foram solicitadas 144 recuperações judiciais no primeiro trimestre, representando 29% do total.
A situação do comércio reflete as adversidades enfrentadas pelo consumidor. “Ele sofre com os preços altos dos alimentos e com o poder de compra reduzido”, diz Rabi. Em março, havia 72,9 milhões de consumidores com restrições de crédito, o maior número desde o início da série histórica, em 2016.
As vendas do comércio, porém, ainda estavam em alta na última divulgação do IBGE – até março, o crescimento em 12 meses era de quase 3%. “Olhando para 2024, a expectativa é que um mercado de trabalho mais aquecido, a política de valorização do salário mínimo e uma inflação controlada possam compensar um juro real ainda alto”, afirma o economista Igor Cadilhac, do PicPay.
O problema, segundo Rabi, é que o comércio opera com margens de lucro estreitas. E os segmentos mais dependentes de crédito são os mais afetados no cenário de juros elevados. O volume de vendas de materiais de construção, por exemplo, caiu 1,5% em 12 meses. Outro segmento com vendas em baixa é o de móveis, com queda de 4% em um ano.
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