O agro pode até ser pop, mas não é imune às oscilações da economia, nem mesmo à crise climática. Prova disso é o aumento de 300% na quantidade de pedidos de recuperação judicial de empresas do setor entre janeiro e setembro do ano passado, na comparação com o mesmo período de 2022.
Esse número é de um estudo da Serasa Experian que catalogou e analisou pedidos de recuperação judicial de produtores rurais — pessoas físicas e jurídicas —, além de empresas que, apesar de não serem produtoras, estão relacionadas ao agronegócio.
O resultado do estudo escancara o crescente endividamento do agronegócio. A atividade exige alto investimento em tecnologia e maquinário para manter a competitividade e vem sendo afetada por condições climáticas adversas e queda nos preços das commodities. Uma tempestade perfeita, capaz de surpreender até mesmo os produtores rurais mais experientes.
O advogado Pedro Salles, sócio do Salles Nogueira Advogados, explica que além de sofrer com todas as variáveis normais de mercado, tais como política econômica, oscilação de preço, entre outros, ainda sofre com as intempéries, sobretudo condições climáticas.
“E aí é que o problema aumenta: estamos vivendo o fenômeno El Niño, que deve se estender até meados do ano. Há rumores que a safra de soja que está se encerrando foi bastante impactada, o que deve complicar ainda mais a vida dos produtores rurais em dificuldades”, diz.
Além dos fatores econômicos e climáticos, uma das explicações para o aumento de pedidos de recuperação por empresas e empresários do setor é o aumento da segurança jurídica. A Lei 14.112, que reformou a Lei de Recuperação Judicial (Lei 11.101), apresentou alguns dispositivos voltados exclusivamente a produtores rurais em dificuldades.
O advogado Rafael Brasil, sócio do escritório Brasil e Silveira Advogados, explica que as novidades trazidas pela Lei 14.112 tornaram a alternativa da recuperação judicial mais atraente para produtores rurais. “A pacificação da jurisprudência em torno de alguns aspectos da lei também é importante para reforçar essa segurança jurídica. A RJ no agro já foi até motivo de tema repetitivo no Superior Tribunal de Justiça.”
O Tema 1.145 do STJ, citado por Brasil, estabelece que o produtor rural que exerce sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos pode requerer recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido, independentemente do seu tempo de registro.
Anteriormente, era exigido que o produtor tivesse dois anos de registro na Junta Comercial antes do pedido de recuperação. No julgamento que resultou no Tema 1.145, o relator da matéria, ministro Luis Felipe Salomão, explicou que as turmas de Direito Privado do STJ já entendiam que, apesar da necessidade de registro anterior ao requerimento da recuperação, não há exigência legal de que isso tenha ocorrido dois anos antes da formalização do pedido.
Ele também destacou que o registro permite apenas que, nas atividades do produtor rural, incidam as normas previstas pelo Direito Empresarial.
A advogada Monique Antonacci, especialista em recuperação judicial do escritório Bissolatti Advogados, ressalta que o produtor rural poderá comprovar sua atividade empresarial dois anos antes do registro na Junta Comercial por meio de Escrituração Contábil Fiscal (ECF), Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), declaração de Imposto de Renda de Pessoa Física (DIRPF) ou balanço patrimonial.
Créditos sujeitos a RJ
A atividade rural tem algumas particularidades em relação às demais práticas empresariais, por isso, apesar de o artigo 49 da Lei 11.101 delimitar quais créditos estão sujeitos a recuperação judicial, com menções específicas ao agronegócio, ainda existe discussão jurisprudencial sobre alguns deles.
Monique lembra que somente estão sujeitos a recuperação os créditos que decorrem exclusivamente da atividade rural e estão discriminados nos documentos de escrituração contábil. “Quanto aos recursos advindos do crédito rural, poderão se sujeitar à recuperação judicial caso não tenham sido objeto de renegociação entre o devedor e a instituição financeira antes do pedido de recuperação.”
Uma das discussões mais recentes sobre o tema tem como protagonista a Cédula de Produto Rural (CPR), título que representa a promessa de entrega futura do produto agropecuário e que pode ser emitido pelo produtor rural na captação de recursos.
Filipe Denki, sócio da banca Lara Martins Advogados, destaca que a CPR de liquidação física (entrega literal do grão ao investidor) não está sujeita a recuperação judicial, mas a de liquidação financeira (devolução do valor captado em dinheiro) pode ser incluída.
“Muitas teses estão sendo debatidas no Judiciário sobre a inclusão da CPR de liquidação física nos processos de recuperação judicial. Alguns acham que não pode porque o artigo 49 da Lei 14.112 seria taxativo. Outros acreditam que o grão dado em garantia seria essencial à atividade agrícola, por isso a CPR de liquidação física deveria ser incluída em processo de RJ.”
Uma possibilidade interessante para o pequeno produtor é apresentar um plano especial de recuperação judicial com todos os créditos existentes na data do pedido, com parcelamento em até 36 parcelas mensais, iguais e sucessivas, acrescidas de juros equivalentes à taxa Selic, desde que a dívida não seja superior a R$ 4,8 milhões.
Nessa modalidade, não é necessário convocar assembleia-geral de credores e a concessão da recuperação judicial cabe exclusivamente ao juiz. Em caso de improcedência do pedido, o magistrado poderá decretar falência, caso os credores titulares de créditos que representem mais da metade de qualquer uma das classes (trabalhista, reais ou quirografários) apresentem objeções.
Gargalo judicial
Apesar da disparada no número de pedidos de recuperação no agronegócio, ainda existe um obstáculo importante para os produtores em dificuldades: a falta de estrutura das varas de falências para lidar com esse tipo de processo. A advogada Giulia Panhóca, do escritório Ambiel Advogados, recorda que a Lei 11.101 determina que a recuperação judicial deve ser processada na sede da empresa: “E, no geral, para empresas que atuam no agronegócio e produtores rurais, as sedes estão em comarcas minúsculas, sem vara especializada, muitas vezes sem juiz titular e com pouquíssimos servidores.”
Rafael Brasil vai pelo mesmo caminho. Ele diz que o problema não é a falta de competência dos magistrados e servidores das comarcas menores, mas de estrutura. “Muitos casos de RJ de produtores rurais envolvem centenas de milhares de reais, são causas extremamente complexas e exigem uma disponibilidade não só de capital humano, com equipes mais numerosas, mas até de estrutura física.”
Outra dificuldade apontada pelo advogado é a grande divergência que existe sobre o que é o “principal estabelecimento” em uma recuperação de produtor rural. “A dúvida é se é a sede estatutária, o centro administrativo ou o local onde há maior volume econômico — e aqui se inclui onde se abrigam a maioria dos credores e o maior volume de operações e bens do devedor.”
Por fim, Brasil cita o estudo do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas que apontou que apenas dez Tribunais de Justiça possuem varas especializadas em recuperação judicial. De acordo com ele, se isso já é suficiente para resultar em um gargalo importante para as recuperações em geral, o problema é ainda mais grave quando se trata do agronegócio.
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