03 de Maio de 2007 - 14h:50

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Os advogados e as provisões contábeis

Por: Wagner Balera e Ana Paula Oriola - Valor On-Line

Karl Engish afirma com precisão: "Os conceitos absolutamente determinados são muito raros no direito" ("Introdução ao Pensamento Jurídico", 8ª edição, página 208). Esta é uma fotografia apurada do direito, demonstrando que ele se movimenta na esfera da interpretação. No entanto, o império da técnica está impondo aos advogados grandes e graves reformulações em seu modo de pensar e repensar o objeto de seus estudos e labor, principalmente quando chamados a patrocinar causas para sociedades anônimas. É que, chamados a emitir informações e opiniões que serão o fundamento de provisões contábeis das sociedades anônimas, seus relatórios apresentam dados cujo teor permitirá que os auditores e contadores avaliem se determinada contingência ativa ou passiva deverá ou não ser objeto de provisão contábil ou de sua reversão.

Destarte, o que inicialmente consistia em um mero fornecimento de dados e informações sobre a possibilidade de perda ou de êxito de uma determinada ação judicial com certa classificação genérica não é mais considerado suficiente para sustentar a posição contábil a ser registrada nos atos pertinentes. De fato, não basta que seja apontado o evento como remoto, possível ou provável. O advogado deverá estimar percentualmente, em seu relatório, a chance de perda ou de exito.

Percebe-se que, ao precisar o exato percentual de perda ou de êxito de uma determinada demanda, sem dúvida o advogado estará facilitando sobremaneira a avaliação dos auditores e contadores, que poderão classificar aquela como uma contingência ativa ou passiva a ser, então, objeto de uma provisão contábil ou de sua reversão, dado que na atualidade incumbe-lhes acompanhar a harmonização entre as práticas contábeis brasileiras e as práticas contábeis internacionais, seja para alcançar a transparência e a segurança exigidas para as informações contábeis das sociedades anônimas, especialmente quando controladas por acionistas estrangeiros, seja para viabilizar o acesso das empresas nacionais às fontes de financiamento externas.

Mas o advogado está diante de uma tarefa de difícil execução, e dela quer se desvencilhar mediante a criação de sofisticados gabaritos de quantificação percentual de êxito ou de perda das demandas judiciais que patrocina. A realidade do direito, no entanto, não pode sujeitar-se às medidas de matemáticos, de estatísticos, de contadores ou de auditores. Quando é chamado a patrocinar uma causa, o parâmetro do advogado é baseado, sobretudo, na práxis. Indagará, preliminarmente, se o direito invocado pelo cliente encontra amparo na norma jurídica vigente; em seguida verificará se há um conjunto probatório consistente a amparar o direito invocado; e por último constatará se já foram abertos os precedentes judiciais, cotejando as decisões favoráveis com as desfavoráveis e os argumentos que servem de suporte a tais julgados.

O advogado, no entanto, está ciente de que mesmo todos estes dados são meros indícios incapazes de revelar a certeza de êxito ou de perda de uma demanda judicial. Para retirar qualquer precisão matemática desta forma de avaliação, basta verificar que muitas vezes sobre a mesma questão existem duas decisões, emanadas de um mesmo tribunal, uma a favor e outra contra. O que dirá o advogado ao seu cliente? A ação terá 100% de chance de êxito ou terá 100% de chance de perda?

Com a finalidade de criar práticas mais uniformes para estabelecer as contingências passivas originárias demandas judiciais, entre outras, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) aprovou, por meio da Deliberação nº 489, de 3 de outubro de 2005, a Norma e Procedimento de Contabilidade (NPC) nº 22, emitida pelo Instituto Brasileiro de Auditores Independentes (Ibracon). Os parâmetros de avaliação continuam sendo aqueles já utilizados nos relatórios jurídicos, quais sejam: o êxito ou perda da ação é provável, possível ou remoto, não estando atrelados a números percentuais, indicando, por outro lado, determinadas condições gerais que deverão ser utilizadas no julgamento da necessidade ou desnecessidade da provisão contábil, assim listadas na Interpretação Técnica nº 2, de 2006, do Ibracon: 1) Existência de jurisprudência pacificada nos órgãos que tenham o poder de deliberar de forma definitiva sobre a matéria controversa; 2) Opinião dos advogados patrocinadores da causa quanto à existência de falhas processuais ou de outros problemas que poderiam impactar na decisão do processo concreto da entidade, além de uma avaliação quanto ao desfecho da causa. 3) Evidências de que a norma prevista na lei não acarretará em redução patrimonial futura. Essa evidência inclui o consenso que pode ser obtido de especialistas qualificados de notória experiência, conhecimento e projeção na matéria-objeto da controvérsia.

Quanto à jurisprudência pacificada, nos termos da citada Interpretação Técnica nº 2 do Ibracon, tem a expressão "o objetivo de definir que as decisões deverão ter o condão de indicar a tendência firma de julgamento dos órgãos julgadores, ou seja, não basta que haja somente uma enorme quantidade de decisões a respeito da matéria sob avaliação, mas essa quantidade deverá indicar qualitativamente que haverá a tendência de a matéria ser decidida no mesmo sentido das que foram apresentadas fundamentando todo o processo".

De acordo com a Deliberação nº 489 da CVM, o que se espera do advogado é o enquadramento do pleito dentro da classificação genérica ali proposta. Ao cobrarem mais do que a própria norma técnica está preordenando, inclusive e especialmente a especificação numérica do percentual de chances de êxito da demanda, os clientes pretendem que o advogado obtenha nos arcanos dos alquimistas as fórmulas mágicas capazes de transformar o metal comum em ouro de Ofir. Que não se iludam, porém. Tal tarefa não poderá ser executada com segurança por nenhum profissional que preze o seu conhecimento especializado e a bagagem cultural que o envolve.

Wagner Balera e Ana Paula Oriola de Raeffray são advogados e, respectivamente, professor titular da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo; e mestre em direito e co-autora do livro "Tributação nos Mercados Financeiro e de Capitais" pela editora Quartier Latin

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