18 de Julho de 2007 - 11h:43

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Advogado público serve para defender a ordem pública

Com a Constituição de 1988, que instituiu o Estado Democrático de Direito entre nós, dois órgãos estatais tiveram sua importância sobejamente reconhecida: o Poder Judiciário e o Ministério Público. O primeiro tornou-se a instância por excelência da resolução dos conflitos sociais1. Mais ainda, foi considerado o fiel da balança no novo Estado que surgia. Depois de duas décadas de predomínio quase exclusivo do Poder Executivo, o Judiciário passa a ser o novo “Poder Moderador”: a “instância suprema que paira acima das disputas de partidos, grupos, seitas, idéias e indivíduos” 2.
O Ministério Público, por sua vez, conseguiu que a Constituição reconhecesse a autonomia tão almejada, desgarrando-o do Poder Executivo, a ponto de ser considerado por muitos como um “quarto poder”. Ao órgão ministerial, foi incumbida exclusivamente a defesa dos direitos sociais e individuais indisponíveis, não lhe sendo mais possível defender os interesses do Estado como pessoa jurídica. Nos processos em que atua, sua função é de “parte imparcial”, não estando vinculado à defesa de interesses pessoais ou partidários3, mas apenas à defesa da ordem jurídica.
E o advogado público? A Advocacia Pública foi incluída entre as funções essenciais à Justiça; portanto, no mesmo patamar constitucional do Ministério Público. Apesar disso, a realidade tem-se mostrado oposta à previsão da Carta Magna. O pagamento de subsídios em patamar bastante inferior à magistratura e ao Ministério Público e a ausência de independência funcional do advogado público são fatores que destoam do tratamento constitucional dado à carreira.
Por isso, é relevante se refazer a questão fundamental: qual a finalidade da Advocacia Pública? Em outros termos, para que serve o advogado público?
A visão do senso comum
O senso comum vai responder a essa questão de modo bastante simplista: ao contrário do Ministério Público e da Magistratura, a Advocacia é uma instituição necessariamente parcial. O objetivo do advogado no processo não seria buscar a verdade, mas defender a qualquer custo os interesses de seus clientes, mesmo que, para isso, precise litigar de má-fé. No imaginário popular, os termos “advogado” e “ladrão” são encarados freqüentemente como sinônimos4. E os advogado públicos seriam aquela categoria de “ladrões” que têm a atribuição de defender os detentores do poder, mais exatamente, os agentes políticos, cujo objetivo primordial seria sugar os recursos da sociedade para serem usados em prol de seus interesses particulares.
A Advocacia, portanto, não seria uma instituição essencial ao funcionamento da justiça, mas, ao contrário, um entrave a seu regular funcionamento, ao colocar interesses particulares acima do interesse público5. Nesses termos, a Advocacia Pública tem a “sórdida” finalidade de defender o interesse público secundário (pertinente ao Estado enquanto pessoa jurídica e, de modo sub-reptício, aos detentores do poder) contra o interesse público primário (pertinente à sociedade em geral), este já defendido pelos “arautos da Justiça”, os membros do Ministério Público.
A despeito de muitos advogados, privados e públicos, corresponderem fielmente ao estereótipo consagrado de defensor a todo custo de quem quer que seja (desde de que se pague), essa simplificação grotesca não resiste a uma análise mais acurada.
A Advocacia
Primeiramente, é preciso verificar a advocacia como gênero. Os advogados são regidos no Brasil por dois diplomas básicos: o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (EOAB) (Lei 8.906, de 4 de julho de 1994) e o Código de Ética e Disciplina da OAB (CED) (promulgado pelo Conselho Federal da Ordem em 1 de março de.1995). Nos dois instrumentos, não se ignora que o direito e a moral não são esferas diversas, mas, ao contrário, só se pode ser juridicamente lícito aquilo que também for moralmente adequado.
O artigo 1° do CED já dispõe que “o exercício da advocacia exige conduta compatível com os preceitos (...) da moral individual, social e profissional”. De modo mais explícito, o artigo 20 dispõe que “o advogado deve abster-se de patrocinar causa contrária à ética, à moral...”. A leitura desses dois dispositivos leva a uma conclusão inexorável: a advocacia está estritamente vinculada não apenas às normas legais, mas também às normas éticas e morais da sociedade como um todo, da profissão e do próprio indivíduo.
A última espécie de moral é especialmente cara ao advogado, que pode recusar-se a defender determinada causa se aquele patrocínio contrariar seus princípios morais. Aqui a consciência individual deixa de ser serva do pensamento dominante para se tornar a referência das ações do indivíduo. O advogado é um livre-pensador, que tem o direito de exercer seu mister apenas quando compatível com o que considera correto. Caso contrário, poderá invocar a objeção de consciência (incompatibilidade moral entre o profissional e o serviço a ser prestado).
O respeito ao foro íntimo do advogado, ou seja, àquilo que ele considera correto, só pode ocorrer em um ambiente em que seja garantida sua liberdade, o que é previsto expressamente pelo artigo 7°, I, do EOAB. Essa liberdade é tão fundamental ao advogado que o Estatuto a garante mesmo àquele que esteja empregado. Aliás, o artigo 18 do EOAB é contundente ao determinar que “a relação de emprego (...) não retira a isenção técnica nem reduz a independência profissional inerentes à advocacia”. Portanto, não existe poder hierárquico do empregador sobre o advogado empregado no tocante às suas manifestações, que devem estar sempre protegidas de quaisquer desmandos.
O advogado público, além de expressamente regido pelo EOAB (art. 3°, § 1°), também deve obedecer, no âmbito federal, às disposições da Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990 (Estatuto dos Servidores Públicos Federais), nos termos do art. 27 da Lei Complementar 73, de 10 de fevereiro de 19936.
A situação do advogado público
Torna-se necessário verificar se os dispositivos citados aplicam-se também aos advogados públicos federais ou se o regime jurídico do servidor público da União veta a independência funcional a esses profissionais.
Primeiramente, é relevante perceber que a administração pública tem seus princípios expressamente previstos na Constituição Federal (art. 37, caput), quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Dentre eles, releva o princípio da legalidade, segundo o qual os agentes públicos só podem fazer aquilo que esteja expressamente previsto em lei. Nesse sentido, é o magistério de Pietro (2003, p. 67):
“Este princípio, juntamente com o controle da administração pública pelo Poder Judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Isto porque a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece os limites da atuação administrativa que tenha por objetivo a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da coletividade.”
Ora, a legalidade dos atos administrativos deve ser verificada exatamente por aqueles profissionais qualificados para o mister: os advogados públicos. Essa verificação é exatamente o controle interno dos atos administrativos, previsto expressamente pela Constituição (art. 74). Antes, durante ou mesmo depois da expedição desses atos, é indispensável que o advogado público verifique sua legalidade7. Para o efetivo exercício do controle interno, é indispensável que exista independência do profissional que o realize, sob pena de se tornar suscetível a pressões políticas em sentido contrário ao prescrito no ordenamento jurídico.
Não se pode desconhecer que um dos poderes inerentes à administração pública é o poder hierárquico, segundo o qual os ocupantes de cargos de hierarquia inferior devem obediência àqueles que ocupam cargos de hierarquia superior. A gravidade da hierarquia é tanta que um dos deveres dos servidores públicos é “cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais” (Lei 8.112/90, art. 116, IV), cujo descumprimento implica sanção de advertência (art. 129).
Porém, o poder hierárquico deve ser interpretado sistematicamente, verificando-se a compatibilidade do exercício desse poder com a natureza da função do advogado público. A resposta claramente é negativa, como se depreende da doutrina de Pietro (2003, p. 92-93):
“Pode haver distribuição de competências dentro da organização administrativa, excluindo-se da relação hierárquica com relação a determinadas atividades. É o que acontece, por exemplo, nos órgãos consultivos que, embora incluídos na hierarquia administrativa para fins disciplinares, por exemplo, fogem à relação hierárquica no que diz respeito a suas funções. Trata-se de determinadas atividades que, por sua própria natureza, são incompatíveis com uma determinação de comportamento por parte do superior hierárquico.”
Ressalte-se que o advogado público deve obedecer à hierarquia da entidade em que atua, mas apenas em questões puramente administrativas, como escala de férias, distribuição de processos e fixação de horários. Essa hierarquia desaparece quando se trata do conteúdo das manifestações do advogado público, que tem a liberdade de expressão garantida como qualquer advogado. Assim, a chefia tem a prerrogativa de distribuir os processos que considerar mais pertinentes a cada subordinado, mas não pode, de maneira alguma, determinar qual a peça a ser feita em determinado caso e nem os argumentos jurídicos a serem utilizados nessa petição. É possível, inclusive, que não seja feita peça nenhuma, de acordo com um juízo de legalidade e mesmo de efetividade da medida. Nesses casos, porém, torna-se indispensável a motivação da negativa de ajuizamento da petição, nos termos do artigo 50, I, da Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999.
Portanto, o advogado público conta com verdadeira independência funcional, que, a despeito de não estar prevista expressamente na Constituição Federal, pode ser inferida a partir de seus dispositivos, como o princípio da legalidade e a exigência de controle interno da administração pública. Trata-se de um verdadeiro princípio constitucional implícito8 que regula não só a atividade dos advogados públicos, mas também toda a administração pública, que deve obediência aos ditames do Estado Democrático de Direito.
Porém, a independência funcional do advogado público não é a finalidade de seu trabalho, mas apenas o instrumento que possibilita atingir seu objetivo, que é o mesmo de qualquer agente público: satisfazer o interesse público primário, ou seja, o bem geral da coletividade, que, no Estado Democrático de Direito, é efetivado na observância do ordenamento jurídico.
E se o chamado “interesse público secundário”, que diz respeito ao Estado enquanto pessoa jurídica, contrariar o verdadeiro interesse público, que diz respeito a toda a coletividade? Os advogados públicos só terão uma opção: atender ao interesse público primário, impedindo que o Direito seja violado pelos detentores do poder, realizando o controle preventivo de legalidade ou, se consumado o ato ilícito, deve sugerir sua anulação e mesmo, se for o caso, denunciar o responsável ao Ministério Público por crime contra a administração pública (Código Penal, art. 312 a 327) ou por ato de improbidade administrativa (Lei 8.429, de 2 de junho de 1992).
Então, para que serve mesmo o advogado público? Não é apenas a defesa das entidades estatais, que é secundária e só poderá ocorrer se essas agirem de acordo com a lei. Antes disso, sua finalidade precípua é simplesmente a defesa da ordem jurídica9.
Notas de rodapé
1 - Um dos grandes fenômenos sociológicos brasileiros das últimas décadas é exatamente a jurisdicionalização das lides. Muitos consideram que somente o Poder Judiciário tem legitimidade para resolver os litígios. Um dos efeitos dessa ideologia é o gigantesco número de processos em trâmite.
2 - CARVALHO, Olavo de. O Partido Imperial. O Globo, 13 de março de 2004. Não por acaso, Edson Vidigal, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, declarou na abertura dos trabalhos do Poder Judiciário em 2006, que “o Supremo, sendo o guardião da Constituição, não pode recusar a sua função de poder moderador da República” (in http://www.stj.gov.br/webstj/Noticias/detalhes_noticias.asp?seq_noticia=16340. Acessado em 7.4.2007).
3 - A imparcialidade ministerial é uma qualidade nem sempre alcançada. Nesse sentido: “Consideradas as investidas contra autoridades do governo federal, de 180 Ações de Improbidade Administrativa ajuizadas entre 1994 e 2007, cerca de 95% tiveram como alvo integrantes do primeiro ou segundo escalão do governo Fernando Henrique Cardoso.” (in http://conjur.estadao.com.br/static/text/53417,1. Acessado em 7.4.2007).
4 - No anedotário popular, as piadas de advogados costumeiramente relacionam a profissão com desonestidade. Aproveito para narrar um acontecimento de minha adolescência em Patrocínio (MG): depois de falar a minha mãe que eu não seria médico como ela sonhava, ouvi o apelo: “Faça qualquer outra coisa meu filho, mas não Direito, porque advogado é tudo ladrão!”.
5 - Essa concepção é tão arraigada que se tornou necessária a criação do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) para demonstrar à sociedade a indispensabilidade do direito à ampla defesa.
6 - A classificação dos advogados públicos entre os servidores públicos é bastante duvidosa, pois sua topografia constitucional (função essencial à Justiça) é semelhante à do Ministério Público, que é composto por agentes políticos. Além disso, a Constituição prevê em seu art. 135 que os membros da Advocacia Geral da União serão remunerados por subsídio, retribuição pecuniária típica de agentes políticos. Nesse sentido, veja-se o excelente artigo publicado na Revista da Procuradoria Geral do Estado do Acre: A Advocacia Pública no Estado Democrático de Direito. Reflexões jurídicas acerca dessa instituição essencial à Justiça. Disponível em http://www.pge.ac.gov.br/biblioteca/revista/revista3/Advocacia%20Publica.pdf. Acessado em 9.4.2007.
7 - Por isso mesmo, a atuação do advogado público não pode restringir-se aos departamentos jurídicos das entidades estatais, “torres de marfim” em que se ignora a atividade realizada no restante da entidade. O advogado público torna-se necessário em todos os departamentos de cada entidade exatamente para evitar a edição de atos administrativos contrários à lei.
8 - Os princípios constitucionais implícitos são pacificamente reconhecidos pela doutrina. Nesse sentido: “Os grandes princípios de um sistema jurídico são normalmente enunciados em algum texto de direito positivo. Não obstante, (...) tem-se, aqui, como fora de dúvida que esses bens sociais supremos existem fora e acima da letra expressa das normas legais, e nelas não se esgotam, até porque não têm caráter absoluto e estão em permanente mutação.” (Barroso, 1999, p. 149).
9 - Em termos substanciais, não há diferença entre a atividade exercida pelo membro da Advocacia Pública e pelo membro do Ministério Público. A ambos cabe defender a ordem jurídica. A diferença reside apenas no modo em que essa defesa é realizada. Não é à toa que até a Constituição de 1988, as duas instituições exerciam basicamente as mesmas funções. Além disso, a atividade ministerial tem o mesmo caráter daquela exercida pelo Poder Executivo, já que o objetivo desse poder é exatamente executar a lei de ofício.
 
Fonte: Consultor Jurídico
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