28 de Junho de 2007 - 14h:47

Tamanho do texto A - A+

Alterações na execução fiscal e os contribuintes

Por: Valor Econômico

Há praticamente dois meses discute-se uma mudança significativa na Lei de Execução Fiscal, que, se implementada, causará fortes impactos aos contribuintes. Regida pela Lei nº 6.830, de 1980, a execução judicial para a cobrança da dívida pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios prevê árduas e severas constrições na hipótese de o contribuinte não cumprir suas obrigações para com a Fazenda pública.

Hoje, por meio dela, os contribuintes inadimplentes poderão ter expropriados todos os seus bens, até o limite da dívida. Estão ainda, por vezes, impedidos de celebrar contratos com a administração pública, contratar empréstimos bancários, e, com raras exceções, impossibilitados de apresentar defesa, salvo tenham constritos bens suficientes para garantir o pagamento da dívida estatal reclamada.

A execução fiscal importa, já como se apresenta hoje, uma severa constrição e amarga experiência para os contribuintes que, muitas vezes, se tornam inadimplentes em razão da efetiva impossibilidade de pagamento da alta carga tributária que os assola. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), ela representou 35,21% do PIB no ano passado, já levando em conta o novo cálculo efetuado pelo IBGE. Na sistemática anterior era de 38,80%. Mesmo com o novo índice, o resultado de 2006 é ainda 1,09 ponto percentual maior que o de 2005.

Contudo, sem embargo da seriedade de seus propositores, busca-se, de forma distante aos princípios norteadores de um Estado democrático de direito, legitimar o que é ilegitimável. Justificar o que é injustificável. Validar o que é invalidável. O anteprojeto de lei em debate propõe, entre outras significativas mudanças, a execução administrativa da dívida pública, isto é, prevê a possibilidade de a administração pública federal, estadual, distrital e municipal promover atos de penhora, avaliação e até mesmo de alienação de bens dos contribuintes.

Sob a alegada necessidade de se agilizar a cobrança do vultoso estoque de dívidas públicas de natureza tributária e não-tributária, travestida na aludida proposta, encontra-se uma tentativa incontestável de supressão de direitos e garantias fundamentais, em uma clara afronta a cláusulas pétreas insertas no texto constitucional. Sobre este aspecto, inclusive, cumpre desde logo assinalar, exemplificativamente, que o próprio Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da Constituição Federal, quando do julgamento de uma medida liminar em uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) proposta contra a Lei Geral de Telecomunicações, já decidiu que a mera busca e apreensão de bens, onde sequer há perda de propriedade, só pode ser promovida por meio do Poder Judiciário, sendo defeso à administração pública fazê-la por ato próprio. Naquela oportunidade, assentou o Supremo que tal disposição contraria a garantia constitucional de que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, conforme dispõe o artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal.

Se tal garantia foi tida por violada pela possibilidade de a administração pública promover, independentemente de uma decisão judicial, a mera busca e apreensão de bens, o que dizer então da previsão inserta no comentado anteprojeto de lei, pela qual é prenunciada a possibilidade de a administração pública penhorá-los, avaliá-los e até aliená-los? Com o devido respeito a seus defensores, não há outra conclusão senão o reconhecimento da flagrante inconstitucionalidade deste dispositivo.

Não há interesse público legítimo que derive de uma proposta que afronte direitos e garantias constitucionais

Indiscutivelmente, não se pode aplaudir um sistema que privilegie o sonegador em detrimento do bom contribuinte, que dê ao inadimplente um mar de regalias. Todavia, a estrutura contemporânea para a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda pública em nada com isso se assemelha. Há que se dizer também, para o bem da verdade, que, dentre a estapafúrdia quantia inscrita em dívida ativa noticiada pelos administradores fazendários, há valores "incobráveis", débitos indevidos, e, sem dúvida, contribuintes mal-intencionados. Entretanto, o tratamento indiscriminado destas questões está longe de ser uma solução.

Hão que ser coibidos os ataques às garantias e direitos dos administrados, que têm sido tão costumeiramente malferidos, como no presente caso, mesmo daqueles revestidos sob o manto da legalidade. O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado tem, como não poderia deixar de ser, seus limites. Sob esta rubrica não se legitima a expropriação de tudo e de todos, custe a quem e o que custar. É indiscutível o fato de que o interesse público reside, também, na satisfação do crédito estatal, porém, desde que respeitadas as garantias e direitos fundamentais. Não há interesse público legítimo que derive de uma proposta que afronte direitos e garantias constitucionais.

O desvirtuamento de princípios e o uso desmedido de institutos não convalidam a boa política pública intentada pelo mencionado anteprojeto. Muito além de uma simples inversão de fases para a cobrança da dívida pública, estão em risco princípios e garantias fundamentais, malferidos na hipótese de serem outorgados à administração pública poderes para executar a dívida pública sem a necessária participação do Poder Judiciário. O contribuinte ficaria com o direito de recuperar em juízo o valor equivalente aos bens já executados (alienados) somente após provar que o débito é indevido, o que pode demandar anos e anos, ainda mais se considerada a hipótese de ter que aguardar nas morosas filas dos precatórios judiciais por uma justa indenização. Neste contexto, oportunizar ao Estado a expropriação, por ato próprio, do patrimônio dos particulares, sem a prévia e necessária atuação do Estado-juiz, sob o pretexto de ser necessária a agilização da cobrança da dívida pública, é pretensão que não se legitima, não se valida e não se justifica.

Rodrigo Chohfi é advogado especialista em direito tributário e sócio do escritório Porto Advogados

VOLTAR IMPRIMIR