07 de Dezembro de 2010 - 12h:01

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As limitações de aplicação do “cram down” nas recuperações judiciais brasileiras

Por: Fábio Tokars

A essência de um processo de recuperação judicial é conhecida: um empresário em situação de crise econômico-financeira elabora um plano de recuperação, que será sujeito à análise dos credores. O objetivo da lei também é claro: preservar empresas economicamente viáveis, mas prejudicadas pela insolvência momentânea. Mas este objetivo pode ser frustrado se (entre outras hipóteses) um credor relevante se opuser ao plano de recuperação. Se houver a rejeição, por alguma das três classes de credores (titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidente de trabalho, titulares de crédito com garantia real e titulares dos demais créditos abrangidos na recuperação), a recuperação judicial se transforma em falência, e a empresa será encerrada para que se proceda à sua liquidação.

Para evitar uma oposição injustificada de credor relevante (vale lembrar que o quorum de aprovação não é dos mais simples de ser compreendido: deve-se obter o voto da maioria, por cabeça e por valor de crédito, a não ser na categoria dos credores de obrigações trabalhistas e derivadas de acidente de trabalho, em que a maioria é calculada apenas por cabeça), desenvolveu-se no direito norte-americano o instituto do cram down (em tradução livre: empurrar goela abaixo). Autoriza-se o juiz a aprovar o plano rejeitado por alguma classe de credores, desde que se verifique a viabilidade econômica daquele plano e a necessidade de se tutelar o interesse social vinculado à preservação da empresa. Na contraposição entre o interesse público e o particular, protege-se o que efetivamente deve ser protegido.

No Brasil, a Lei 11.101/2005 aparentemente contém um instituo próximo ao cram down. De acordo com o § 1.º do art. 58, "o juiz poderá conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do art. 45 desta Lei, desde que, na mesma assembléia, tenha obtido, de forma cumulativa: I o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembléia, independentemente de classes; II a aprovação de 2 (duas) das classes de credores nos termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas; III na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, computados na forma dos §§ 1.º e 2.º do art. 45 desta Lei." A regra é complementada pelo § 2.º: "A recuperação judicial somente poderá ser concedida com base no § 1.º deste artigo se o plano não implicar tratamento diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado."

Muito se elogiou o espírito do legislador, que teria atentado mais uma vez para a preponderância do interesse social. Mas a louvação dos textos teóricos não encontra qualquer reflexo na prática. E não é por acaso. A ideia deveria ser simples: quando não se obtém a aprovação, o juiz deveria poder forçar a aplicação do plano, desde que estivesse clara a necessidade de tutelar o interesse social, de alguma forma prejudicado pela vontade de um ou alguns dos credores. Contudo, as limitações impostas pela lei, além de nos forçar a rememorar as lições de matemática, praticamente inviabilizam a aplicação do instituto. A decisão que se sobrepõe à reprovação do plano não se funda no interesse social, mas sim na verificação de uma espécie de quorum alternativo de deliberação. E um quorum alternativo que está muito próximo ao necessário para a aprovação. Afinal, é necessário que, cumulativamente: a) tenha ocorrido a aprovação geral (não mais por classes) da maioria dos credores (maioria calculada agora pelo valor dos créditos); b) a rejeição tenha ocorrido apenas em uma das classes; c) na classe em que houve a rejeição, deve ter ocorrido a aprovação de mais de um terço dos credores; e d) não haja tratamento diferenciado entre a classe dos credores que rejeitaram o plano e a dos demais credores. Quando se consegue verificar esta conjugação de fatores? Quase nunca. Tudo somado, subtraído, multiplicado e dividido, cria-se um belo problema de matemática para a quinta série. Mas, no plano jurídico, a proteção do interesse social por meio do cram down não passa de retórica legislativa.

* Fábio Tokars é mestre e doutor em Direito. É advogado. É professor de Direito Empresarial na PUCPR, no curso de Mestrado em Direito do Unicuritiba e na Escola da Magistratura do Estado do Paraná. flt@marinsbertoldi.com

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