29 de Setembro de 2010 - 10h:22

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Aumento de fusões e aquisições evidencia urgência de reforma do Cade

Acúmulo de processos faz com que empresas tenham de esperar anos por decisão do órgão de defesa da concorrência brasileiro

Por: Veja

O mundo vive hoje um período de efervescência nas negociações de compra e fusão de empresas. Segundo dados da Thomson Reuters, esse mercado movimentou 1,68 trilhão de dólares no acumulado de 2010 até agosto. O Brasil assume papel de destaque neste movimento. Estimativas da consultoria KPMG apontam que o país deve bater recorde histórico até o final do ano, com 710 negociações. “O Brasil tem hoje uma presença jamais vista em operações de fusões e aquisições em sua história. São transações de peso mundial, e não apenas de pequenas e médias empresas”, afirma Claudio Ramos, sócio da KPMG.

Tal cenário, animador para as empresas, chama a atenção para a atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Ao órgão do governo cabe a função de, justamente, analisar as operações e decidir por sua reprovação, aprovação ou liberação com restrições. Ele também tem de julgar e punir práticas anticompetitivas no mercado, como a formação de cartéis.

Com cerca de 30 técnicos, seis conselheiros, um procurador e um presidente para analisar todos os processos, o órgão não viu sua estrutura ser otimizada, nem ampliada no mesmo compasso do crescimento econômico. Lento, burocrático, detalhista e necessário, o Cade luta para desafogar o acúmulo de processos, que podem levar anos para ser analisados. Diante disso, analistas independentes, membros e ex-integrantes do órgão pedem reformas urgentes para torná-lo mais eficiente. “É muito difícil obter eficiência quando se depende de tantos pareceres, como é o caso do Cade”, diz Gesner Oliveira, presidente da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e ex-presidente do Cade.

O problema, segundo Oliveira, é o fato de todos os processos terem de passar por “várias mãos” antes da decisão final da autarquia. Entre elas estão a Secretaria de Direito Econômico (SDE), submetida ao Ministério da Justiça, e a Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), ligada ao Ministério da Fazenda. Em cada uma dessas entidades, o processo pode ficar parado, no mínimo, 90 dias. “O ideal seria que se reunissem todos os órgãos de defesa da concorrência em apenas um”, defende Oliveira.

A demora tem exemplos emblemáticos. Uma multa de 352 milhões de reais aplicada à AmBev em 2009 – devido a exigência de exclusividade na venda de seus produtos em bares e restaurantes – tramitou entre os órgãos por cerca de sete anos antes de ser definida pelo Cade. Um caso mais recente, envolvendo fabricantes de gás hospitalar, que fez com que a autarquia aplicasse a maior multa de sua história (2,33 bilhões de reais), demorou seis anos para ser definido. “O órgão precisa ter uma estrutura melhor e mais gente preparada para dar vazão ao número de operações ao qual é submetido”, diz o advogado Tito Amaral de Andrade, do escritório Machado Meyer.

Toda essa demora impõe às empresas um elevado custo. Boa parte do dinheiro gasto na integração de operações entre companhias pode ser “jogada fora” se, depois de anos, a operação terminar reprovada pelo Cade ou liberada sob restrições. Um exemplo é o interminável caso da compra da Garoto pela Nestlé, ocorrido em 2002. Apenas em 2004 o órgão emitiu sua decisão de que a aquisição teria de ser desfeita. Desde então, a multinacional suíça briga na justiça para que a Garoto seja mantida.

Outro caso amplamente discutido é o das empresas de alimentos Sadia e Perdigão, cuja fusão deu origem à Brasil Foods (BRF). A operação foi analisada pela Seae, do Ministério da Fazenda, que recomendou que, entre outras coisas, a BRF retirasse ou licenciasse uma das ‘marcas-mãe’. O parecer foi emitido apenas em junho de 2010, sendo que a fusão ocorreu exatamente um ano antes. Quando do anúncio, os executivos firmaram com o governo um Acordo de Preservação de Reversabilidade da Operação (Apro), prevendo a manutenção das operações no Brasil totalmente separadas até a decisão final do Cade. Sem poder se integrar de fato, as companhias viram a concorrência, sobretudo a Seara, ganhar mercado; o que levantou rumores de que o Judiciário poderia ser acionado para tentar acelerar a aprovação do negócio (o que foi negado pela BRF).

“O caso da Sadia e da Perdigão completará dezoito meses em outubro. Isso não se deve à indolência dos servidores responsáveis pela instrução, mas sim a uma lei obsoleta que não encontra paralelo em qualquer outro país, à exceção, é claro, do Egito e do Paquistão”, diz Arthur Badin, presidente do Cade, e que termina seu mandato em novembro.

Análise prévia – Para evitar contratempos caros como esses, Estados Unidos e Europa adotam o sistema de análise prévia. Isso significa que, antes do anúncio de uma operação de fusão ou compra de uma empresa, o órgão de defesa da concorrência tem de ser consultado e emitir decisão. Em um cenário normal de análise prévia, a operação da Nestlé e da Garoto dificilmente teria acontecido. “Como uma empresa pode continuar investindo na outra sem saber se ela vai continuar sendo sua?”, questiona o ex-conselheiro do Cade, Marcelo Calliari, do Instituto Brasileiro de Estudo da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac).

Uma ressalva precisa ser feita: casos de decisões desfavoráveis às empresas são, de fato, incomuns no Cade. As estatísticas do órgão evidenciam que cerca de 90% das operações são aprovadas sem restrições. É, afinal de contas, uma autarquia que defende preceitos liberais e o consumo. “Os pareceres favoráveis no Brasil estão em média com o que se observa no resto do mundo. A grande maioria das operações não apresenta problemas concorrenciais”, afirma Tito Amaral de Andrade.

Perspectiva – Além das dificuldades de falta de recursos e de pessoal, o órgão não tem autonomia para fazer uma triagem e julgar apenas casos de grande complexidade – deixando os mais simples à SDE, por exemplo. Com isso, o aumento das operações de fusões e aquisições tende a entulhar ainda mais o funcionamento do Cade. Segundo a KPMG, o próximo ano deverá superar o recorde de 2010. “Tudo conduz a um número ainda maior. O mercado brasileiro está propício para a consolidação”, diz o sócio Claudio Ramos.

A solução, segundo Gesner Oliveira, seria a aprovação do projeto de lei n º 06/2009, que tramita no Congresso há mais de dois anos e que prevê a obrigatoriedade da análise prévia das fusões, além de estabelecer indicadores de produtividade para os técnicos e prever o aumento a quantidade de funcionários no órgão. Ironicamente, dos 127 mil novos funcionários públicos concursados contratados em oito anos de governo petista, nenhum foi direcionado ao Cade.

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