13 de Março de 2009 - 09h:55

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O financiamento à construção civil e a prevenção de riscos

Por: Valor Econômico - Melhim Namem Chalhub

Uma recente iniciativa governamental - a Lei nº 11.908, de 2009 - autorizou empresas estatais a comprar debêntures de construtoras, conversíveis em ações, e abriu novas linhas de financiamento para a construção e comercialização de imóveis. As medidas visam explorar o notório efeito multiplicador da indústria da construção para impulsionar a economia. Preocupa, entretanto, o fato de a lei não exigir como requisito para a aplicação dos recursos públicos a constituição de patrimônio de afetação para cada empreendimento financiado, sabendo-se que esse é o mecanismo de prevenção de riscos criado pela Lei nº 10.931, de 2004, especificamente para as incorporações imobiliárias.

Trata-se de um mecanismo de superior eficácia, de aplicação universal, e disso são exemplos a figura do patrimônio autônomo para negócios específicos, regulado pelo Código Civil italiano, e a "operação de fidúcia" do direito francês. A afetação patrimonial confere uma inigualável segurança jurídica e econômica aos investidores e credores do negócio específico, na medida em que limita os riscos do investimento às forças do ativo do empreendimento e o afasta dos riscos do patrimônio geral da empresa tomadora dos recursos. O patrimônio de afetação tem vida própria, que assegura o prosseguimento do negócio com autonomia, mesmo em caso de falência da empresa que o instituiu, ressalvados, naturalmente, casos de fraude.

A Lei nº 11.908, entretanto, na contramão dessa moderna política legislativa, limitou-se a exigir a constituição de uma sociedade de propósito específico (SPE) para cada empreendimento financiado, como se isso prevenisse eficazmente os riscos do negócio. Ora, a SPE nada mais é do que uma sociedade empresária como outra qualquer, de modo que, se falir, arrastará consigo os credores para uma longa, burocrática e paciente peregrinação judicial.

Na afetação não há esse risco, pois os artigos 31A a 31F da Lei nº 4.591, de 1964, com a redação dada pelo artigo 53 da Lei nº 10.931, exclui o empreendimento dos efeitos da falência da empresa, assegura o prosseguimento do negócio e o pagamento dos credores a ele vinculados. Tudo extrajudicialmente, sem intervenção judicial.

Não há dúvida de que a SPE é útil na estruturação de parcerias, tal como o consórcio de empresas para joint ventures, mas é ilusória a crença de que possa assegurar a incolumidade do empreendimento e seu prosseguimento em caso de desequilíbrio patrimonial. É que o caso da incorporação imobiliária é especial, inclusive por envolver a economia popular e o interesse dos adquirentes de imóveis na planta. Por isso é que a Lei nº 10.931 criou um mecanismo próprio de prevenção de risco e estabeleceu procedimentos específicos que asseguram a continuação da obra independentemente de intervenção judicial, mesmo em caso de falência ou recuperação judicial da empresa incorporadora.

Os procedimentos são simples e desburocratizantes: constitui-se a afetação por simples averbação no registro de imóveis e controla-se o empreendimento mediante relatórios periódicos. O empreendimento afetado é incomunicável por definição legal, circunstância que lhe confere eficácia superior a qualquer outra garantia, pois a incorporação permanece blindada contra riscos de constrição por dívidas do patrimônio geral da empresa incorporadora, inclusive em caso de falência. Nesse caso, o artigo 31F da Lei nº 4.591 confere poderes a uma comissão de representantes dos adquirentes para prosseguir a obra e para outorgar as escrituras aos adquirentes, firmando-as juntamente com a instituição financiadora da obra. Tudo independentemente de intervenção judicial.

A extrajudicialidade e a implementação dos procedimentos diretamente pelos credores conferem uma extraordinária celeridade na retomada da obra e recuperação do crédito. Tal é a eficácia da afetação que a Lei de Falências e Recuperação de Empresa assimilou-a incondicionalmente e ratificou de modo explícito a imunidade da incorporação contra os efeitos da falência, corroborando a prevalência da lei especial e consolidando a estruturação legal que assegura a continuação da obra livre dos efeitos da falência e mediante procedimentos extrajudiciais, conforme prevê o inciso IX do artigo 119 da Lei nº 11.101, de 2005. Diversa é a situação na SPE, na qual não são admitidas medidas extrajudiciais para esses fins. Sua eventual falência opera-se exatamente como a de qualquer outra sociedade empresária, submetendo o negócio a todos os entraves próprios do processo falimentar.

No momento em que, em meio à devastadora crise atual, o governo se dispõe a liberar recursos públicos para o financiamento da produção imobiliária, é útil lembrar que, entre os fatos do passado recente que motivaram a lei da afetação, estão a debacle do sistema de refinanciamento do Banco Nacional da Habitação, extinto em 1986, os danosos efeitos da falência da maior construtora do país, na década de 1990, e o enunciado da Súmula nº 308 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), pela qual a hipoteca constituída pela incorporadora em favor da financiadora, para garantia do financiamento da construção, não produz efeito em relação dos promitentes compradores de apartamentos. Esquecer essas lições e aplicar recursos públicos sem o mecanismo próprio de prevenção de riscos nas incorporações imobiliárias é uma temeridade. Afinal, gato escaldado tem medo até de água fria.

Melhim Namem Chalhub é advogado, professor e autor dos livros "Direitos Reais", pela editora Forense, e "Da Incorporação Imobiliária" e "Negócio Fiduciário", pela editora Renovar

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