17 de Dezembro de 2008 - 15h:00

Tamanho do texto A - A+

O credor fiduciário e a recuperação judicial

Por: Valor Econômico - Alexei Bonamin

Em tempos de crise econômica internacional e de represamento do crédito, muitas vezes empresas se tornam inadimplentes e em alguns casos até insolventes. Diante de um cenário adverso, algumas são submetidas a um processo de reestruturação de seus passivos ou têm suas falências decretadas.   

No Brasil, a falência e a recuperação de empresas são reguladas pela Lei nº 11.101, de 2005, cujo projeto foi debatido amplamente pelo Congresso Nacional por mais de uma década com o objetivo de aprimorar e modernizar nosso sistema falimentar. Dentre as inúmeras inovações trazidas pela Lei nº 11.101, destacam-se os mecanismos para aumentar a capacidade de credores reaverem seus créditos em caso de inadimplência ou insolvência de devedores. Esse fortalecimento da segurança jurídica contribui tanto para a redução do custo do crédito em momentos de estabilidade econômica como para a superação do represamento do crédito nos dias atuais. 

Historicamente, o Brasil apresenta baixos índices de recuperação de crédito no caso de inadimplência ou insolvência do devedor. Diversos fatores contribuíram para reduzir a capacidade de credores reaverem seus créditos, dentre eles a insegurança jurídica das garantias reais - notadamente, o penhor e a hipoteca - no âmbito de uma massa falida. Contudo, nos últimos anos algumas iniciativas normativas foram fundamentais para fortalecer a segurança jurídica das garantias reais de credores, especificamente as diversas espécies de propriedade fiduciária em garantia, 1) resguardando a coisa objeto da propriedade fiduciária em garantia dos efeitos da inadimplência ou insolvência do devedor, conforme o caso, e 2) contribuindo para a democratização e barateamento do crédito. 

Todavia, no que tange à titularidade fiduciária em garantia de direitos creditórios, também conhecida como "trava bancária", tem-se argumentado, recentemente, que os direitos creditórios, objeto de titularidade fiduciária em garantia, deveriam se sujeitar aos efeitos da recuperação judicial. Esse argumento baseia-se na premissa equivocada de que coisas incorpóreas, como por exemplo, direitos creditórios, não são bens móveis. Dessa forma, de acordo com tal argumento, os direitos creditórios não se enquadrariam no disposto no artigo 49, parágrafo 3º da Lei nº 11.101, que "apenas" teria excepcionado bens móveis e imóveis. Esse dispositivo legal reza que, tratando-se de um credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais. 

Contrariamente, entende-se que o conceito de bem móvel é um conceito legal, definido pelo Código Civil em sua parte geral. Nos termos do artigo 83, inciso III do Código Civil, consideram-se móveis os direitos pessoais de caráter patrimonial, de modo que não há dúvida de que coisas incorpóreas de caráter patrimonial, tais como direitos creditórios, são bens móveis para os efeitos legais. A esse respeito, a melhor doutrina já sedimentou o entendimento de que aos direitos creditórios se aplica a disciplina jurídica das coisas móveis. Ademais, tanto a propriedade fiduciária em garantia de coisas corpóreas quanto a titularidade fiduciária em garantia de coisas incorpóreas 1) constituem um direito real de garantia; 2) possuem a mesma função; e 3) são espécies do gênero propriedade fiduciária. 

Além disso, o Parecer nº 534, de 2004, da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal, ao se manifestar sobre a Emenda nº 107 do Projeto de Lei nº 71, de 2003, da Câmara dos Deputados - Projeto de Lei nº 4.376, de 1993, na origem -, posiciona-se categoricamente no sentido de que 1) em momento algum, o então artigo 48, parágrafo 3º (atual artigo 49, parágrafo 3º da Lei nº 11.101) quis diminuir a garantia da alienação fiduciária de direitos creditórios utilizada com freqüência pelas instituições financeiras para concessão de crédito; e (2) o então artigo 48, parágrafo 3º da mesma lei deixa claro que não há prejuízo à garantia da alienação fiduciária de direitos creditórios, o que contribui para expansão do crédito e a redução de seu custo no Brasil. Em outras palavras, a intenção do legislador - e, por conseguinte, o espírito da lei - foi a de excluir o crédito do credor fiduciário, titular fiduciário em garantia de direitos creditórios, dos efeitos da recuperação judicial. 

Da mesma forma, a melhor doutrina e a jurisprudência majoritária - a saber, a decisão no Agravo de Instrumento nº 541.816-4/4-00 e no Agravo de Instrumento nº 548.032-4/7-00, ambas do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), bem como a decisão no Agravo de Instrumento nº 472.495-6 do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) - já se manifestaram no sentido de que o artigo 49, parágrafo 3º da Lei nº 11.101 exclui o crédito do credor fiduciário, titular fiduciário em garantia de direitos creditórios, dos efeitos da recuperação judicial. 

Em suma, o crédito do credor fiduciário, seja ele proprietário fiduciário em garantia de coisas corpóreas ou titular fiduciário em garantia de coisas incorpóreas de caráter patrimonial, como direitos creditórios, não se submete aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do artigo 49, parágrafo 3º da Lei nº 11.101. Argumentar que direitos creditórios, objeto de titularidade fiduciária em garantia, não são bens móveis e que por isso deveriam se sujeitar aos efeitos da recuperação judicial, significa desconsiderar 1) o artigo 83, inciso III do Código Civil; 2) a melhor doutrina; 3) a jurisprudência majoritária; 4) o fato de que tanto a propriedade fiduciária em garantia de coisas corpóreas quanto a titularidade fiduciária em garantia de coisas incorpóreas são espécies do gênero propriedade fiduciária; e 5) a intenção do legislador e, por conseguinte, o espírito da Lei nº 11.101. E mais: significa adicionar um fator desestabilizador nos dias atuais de crise econômica internacional, não contribuindo para a superação do represamento do crédito. 

Alexei Bonamin é advogado da área de mercado de capitais e bancária 

VOLTAR IMPRIMIR