09 de Fevereiro de 2007 - 16h:18

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A tributação de lucros no exterior

Como é sabido, vigora no Brasil um sistema pelo qual são automaticamente tributados pelo IRPJ e CSLL lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior na data da sua apuração no balanço.

Por: Valor OnLine

Reveste-se da maior importância, pelo seu alcance doutrinário e alto nível técnico, o recente acórdão da Primeira Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes que trata da tributação de lucros auferidos no exterior por controladas ou coligadas de empresas brasileiras (Acórdão nº 101-95.802, de 19 de outubro de 2006.

Como é sabido, vigora no Brasil um sistema pelo qual são automaticamente tributados pelo Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior na data da sua apuração no balanço, independentemente da sua distribuição efetiva à controladora ou coligada brasileira, conforme o artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35, de 26 de agosto de 2001. Este sistema substituiu o regime anterior de tributação de dividendos verdadeiramente creditados e pagos aos sócios, estabelecido pela Lei nº 9.532, de 1997.

Este regime de tributação extraterritorial está sujeito a um limite, de ordem constitucional, que respeita à impossibilidade de a lei tributar, como renda de uma dada pessoa jurídica, rendimentos de outra pessoa jurídica na qual participa como sócia controladora ou coligada, antes de esta os ter transferido para a propriedade da primeira, através da sua "disponibilização jurídica ou econômica", nos termos do artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN) mesmo considerado o seu novo parágrafo 2º. A questão - que apresenta funda analogia com a suscitada a respeito do antigo Imposto sobre Lucro Líquido (ILL) - encontra-se presentemente em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.588-1, proposta pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Uma segunda ordem de limites diz respeito à inaplicabilidade do citado regime extraterritorial de tributação às empresas domiciliadas em países que celebraram com o Brasil tratados contra a dupla tributação e que contêm uma cláusula segundo a qual os lucros de uma empresa de um Estado contratante só podem ser tributados nesse Estado.

Pois bem. O recente acórdão do Conselho de Contribuintes deu resposta límpida e magistral a esta questão. A cláusula de competência tributária exclusiva do país estrangeiro de domicílio da controlada ou coligada (e simetricamente de exclusão de competência do país de sociedade investidora), constante do artigo 7º da Convenção Modelo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), é, conforme há muito vimos sustentando, o "coração dos tratados". Sem ela estaria permitida toda a sorte de guerra fiscal unilateral pelo qual os Estados se arrogassem o poder de taxar empresas estrangeiras, invadindo espaços de soberania alheios. Sem ela, por exemplo, a Itália poderia livremente tributar o lucro da Fiat brasileira, por tratar-se de controlada no exterior, o que seria inadmissível.

Segundo o referido acórdão, o artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35 enquadra-se precisamente na vedação do referido artigo 7º, por constituir uma verdadeira tributação de lucro de empresa estrangeira. Ficou, assim, afastada a interpretação segundo a qual estaríamos não perante uma tributação de lucro de empresa estrangeira, mas de um "dividendo fictício" da sociedade brasileira decorrente de uma pretensa distribuição da participada estrangeira.

Segundo essa interpretação, o país de domicílio do receptor dos dividendos fictos teria, nos termos dos tratados (artigo 10 da Convenção Modelo da OCDE), competência cumulativa com a do país de domicílio da controlada ou coligada (país de fonte). Essa competência cumulativa, em matéria de dividendos (verdadeiros), se justifica porque, ao contrário do lucro da empresa estrangeira, dotada de personalidade jurídica própria, que é rendimento dessa mesma empresa e não da entidade que participa no seu capital, o verdadeiro dividendo, tendo embora a sua fonte na empresa estrangeira, já é rendimento próprio da sociedade investidora.

A referida interpretação não foi adotada no acórdão, por não merecer acolhimento face às leis e tratados brasileiros. Desde logo a lei interna que fundamenta a tributação não permite a referida construção, eis que alude à adição ao lucro da pessoa jurídica brasileira dos próprios lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior, independentemente de serem pagos ou creditados.

Que a lei interna trata de uma tributação de lucro e não de dividendo é confirmado pelo fato de os lucros serem computados pelos seus valores integrais, sem dedução do imposto pago do país de origem. Ora, como bem observa o acórdão comentado, não se distribuem dividendos em valor superior ao lucro disponível para tributação.

Ainda, porém, que a lei interna consagrasse a tributação de um dividendo ficto, não podia ela prevalecer face ao conceito de dividendo consagrado nos tratados (artigo 10, nº 1). A letra destes (em conformidade, aliás, com a Convenção Modelo da OCDE) se refere a dividendos pagos, expressão que revela a vontade de o regime de competência cumulativa nela consagrado apenas se aplicar a rendimentos efetivamente destacados do patrimônio das sociedades e transferidos para o de seus sócios, não permitindo uma interpretação ampla que abrangesse lucros imputados por ficção legal.

Acresce que a teoria geral do direito ensina ser ilegítimo o emprego, por uma fonte de direito, do mecanismo das ficções legais (como o dividendo ficto) para invadir a esfera de competência de outra fonte, delimitada em razão da hierarquia ou da especialidade (como sucede com os tratados), com vista a evitar, de modo indireto ou oblíquo, a prevalência da sua aplicação. Nada mais fácil para burlar as disposições dos tratados do que criar, por lei interna, ficções legais que estabeleçam exatamente o contrário do disposto nos preceitos convencionais. E é precisamente a este resultado que conduz a doutrina do dividendo ficto.

Merece, pois, total aplauso a decisão do Conselho de Contribuintes, que, por uma vez mais, revelou alto padrão técnico e independência de julgamento, reforçando a confiança dos cidadãos no respeito pelos tratados que amparam os seus investimentos em uma economia mundializada.


Alberto Xavier sócio do escritório Xavier, Bernardes, Bragança Sociedade de Advogados e autor do livro "Direito Tributário Internacional do Brasil"
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