06 de Outubro de 2008 - 13h:56

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As patentes de medicamentos e a Anvisa

Por: Valor Econômico - José Gusmão e Fernando Eid

É uma beleza este país. Recentemente, o conselho consultivo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) divulgou uma moção de apoio às atividades desenvolvidas por ela mesma no processamento de patentes. Ou seja, estamos diante de uma proeza: o conselho apóia o aconselhado. Por que esse apoio? É que em fins de junho entrou em vigor a criticadíssima Resolução nº 045, da diretoria colegiada da Anvisa, uma novidade jurídica que representa uma ilegalidade sem tamanho, de caráter claramente ideológico. 

Explica-se. A partir de 2001, a Anvisa passou a se envolver no procedimento de concessão de patentes de invenção da área farmacêutica, cuja análise é realizada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). De acordo com a Lei da Propriedade Industrial, encerrado o exame técnico do pedido de patente e antes da publicação da decisão final do INPI, o processo deve ser encaminhado à Anvisa, para que a agência conceda a chamada anuência prévia. Sem a manifestação favorável do órgão responsável pelo controle sanitário, o pedido de patente não pode ser outorgado pelo INPI. Após sete anos de atuação bastante atrapalhada da Anvisa nos pedidos de patentes para produtos e processos farmacêuticos, a participação da agência foi agora regulamentada. 

Uma primeira leitura do texto da Resolução nº 45 é suficiente para verificar que a Anvisa extrapolou em muito a sua competência, que deveria ficar restrita ao âmbito do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Mais precisamente, a agência só poderia negar anuência a um pedido de patente caso seu objeto pudesse causar dano à saúde pública. É a única interpretação aceitável do artigo 229, alínea "c" da Lei nº 9.279, de 1996. Em clara intromissão ilegal na esfera de atuação do INPI e cometendo um evidente abuso de poder, a Anvisa oficializou o que já vinha ensaiando na prática: o reexame da matéria de competência exclusiva, intransferível e não delegável do INPI. Em outras palavras, avoca a si uma revisão do quanto já analisado pelo corpo técnico do INPI. 

Vistas as competências estabelecidas por lei tanto ao INPI quanto à Anvisa, percebe-se desde logo que em momento algum pretendeu o legislador que a Anvisa revisasse os atos praticados pelo INPI, muito menos aqueles técnico-jurídicos próprios do órgão de propriedade industrial brasileiro. Jamais poderia ser essa a tarefa da Anvisa, que pretende transformar um ato de anuência em mero "nada obsta", em verdadeira instância revisora dos requisitos de patenteabilidade. Não cabe, em momento algum, a revisão da decisão do INPI pela Anvisa, seja por lhe faltar atribuição legal e competência técnica, seja por lhe faltar superioridade hierárquica. Apenas ao Poder Judiciário é dado rever, se provocado, uma eventual irregularidade ou equívoco nas decisões do INPI, que possam constituir lesão ou ameaça de lesão a direito, nos termos da Constituição Federal. 

Ao agir dessa maneira, a Anvisa somente prejudica o sistema de patentes, criando uma insegurança jurídica que terá, como maior conseqüência, a diminuição dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, necessários para a invenção de novas drogas, fundamentais para a saúde da população nacional. Isso porque as empresas farmacêuticas - tanto as de capital estrangeiro quanto as de nacional - serão obrigadas a conviver diariamente com o atraso e as falhas de um órgão sem atribuição nem competência legal ou técnica, atrasando e claramente dificultando o reconhecimento dos seus direitos constitucionais, necessários para a recuperação do capital gasto, fundamental para proporcionar novos investimentos em pesquisa e desenvolvimento. 

Seria bom para o Brasil que a atuação da Anvisa se voltasse para as questões de vigilância sanitária relativas à comercialização de produtos farmacêuticos, com o intuito de verificar os possíveis riscos representados para a saúde pública, estabelecendo um conjunto de ações que possam servir como instrumento capaz de evitar a propagação de doenças e moléstias, proibindo, ainda, a circulação de produtos nocivos à saúde. E não é se intrometendo na concessão dos pedidos de patente farmacêuticas que a Anvisa cumprirá o seu papel fundamental. Isso porque vivemos em um país onde a dengue reaparece e viceja sem a metade da atenção e da energia que a Anvisa dedica às patentes. O papel da Anvisa é e deve ser outro. E, se exercido de maneira correta e efetiva, trará grandes benefícios para a saúde pública, sem a necessidade de medidas demagogas, representadas pelo texto da recente resolução. 

As leis de proteção à propriedade intelectual são leis de incentivo e não de repressão. Incentivo à inovação, à criação, à inventividade, ao risco inerente da pesquisa, que pode resultar e resulta, muitas vezes, em nada. A função da propriedade intelectual é das mais nobres e sofisticadas de que se tem notícia na evolução da civilização. Há quem veja na propriedade intelectual apenas restrição, arrocho, monopólio odioso. São os míopes do atraso, saudosistas do nacionalismo da ditadura militar, mantenedores da cultura da cópia, da pirataria oficializada. 

Não que a propriedade intelectual prescinda de contrapesos. Todo direito requer salvaguardas para garantir o equilíbrio necessário às relações sociais. Mas é preciso ter cuidado para que o remédio, em dose excessiva, não se torne veneno e venha a matar o paciente. Não se pode criar salvaguarda que inverta os princípios nem anule os efeitos desejados pela lei. Muito menos permitir que a Anvisa tenha, como tem tido, um comportamento próprio dos tempos da ditadura militar, interferindo nos procedimentos do INPI "manu militari", usando argumentos absolutamente ideológicos e populistas. Ideologia não é técnica argumentativa. Nunca o foi e não o será. O argumento técnico fundado em ideologia será sempre defeituoso, posto que tendencioso. Não se pode desenvolver um país calcado em pilares tendenciosos na área técnica, assim como não se pode pretender desenvolver argumentos técnicos na discussão política ou ideológica. A mistura não é boa. Cada macaco no seu galho. A Anvisa que ache o seu galho, deixando o INPI no dele. 

José Roberto Gusmão e Fernando Eid Philipp são advogados e sócios do escritório Gusmão e Labrunie - Propriedade Intelectual e, respectivamente, mestre e doutor em direito pela Universidade de Estrasburgo, professor de graduação da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e ex-presidente do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI); e mestre em direito da propriedade industrial pela Universidade de Estrasburgo 

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