23 de Setembro de 2008 - 12h:52

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Trava bancária e recuperação de empresas

Por: Lincoln Fernando Pelizzon Estevam - Valor Econômic

A atual Lei de Recuperação de Empresas estabelece, em seu artigo 49, que todos os créditos existentes na data do pedido de recuperação judicial a ela estão sujeitos, ainda que tais créditos não tenham vencido. Em seguida, elenca as exceções a essa regra nos seus parágrafos 3º e 4º, que excluem da recuperação judicial tanto 1) o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, quanto 2) a importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação. 

Mas e o crédito garantido por cessão fiduciária de títulos de crédito - garantia conhecida no meio empresarial como "trava bancária": estaria ele sujeito ou não aos efeitos da recuperação judicial? Penso que sim, pois a lei não incluiu essa figura expressamente no rol das exceções à regra da sujeição à recuperação judicial. 

A cessão fiduciária de títulos de crédito foi instituída pelo artigo 66-B, parágrafo 3º da Lei de Mercado de Capitais, na redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004, que passou a admitir a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito. Com isso, o sistema legal brasileiro passou a contar com duas espécies do gênero "negócios fiduciários": 1) a alienação fiduciária de coisa, que pode ser móvel ou imóvel, e 2) a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito. 

Não é preciso grande esforço para reconhecer que, se não fossem espécies distintas, bastaria ao legislador tratar ambas simplesmente como alienação fiduciária. Não as igualou e nem poderia, pois a distinção decorre do fato de que apenas na alienação fiduciária o credor assume a condição de proprietário fiduciário da coisa, pois a propriedade fiduciária somente pode ser constituída sobre a coisa, e não sobre o direito/crédito. É assim que o Código Civil define, como fiduciária, a propriedade resolúvel sobre a coisa - no caso, móvel e infungível - que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor. 

Portanto, não resta dúvida de que alienação fiduciária e cessão fiduciária são institutos distintos: somente na alienação o credor passa à condição de proprietário fiduciário da coisa (bem móvel ou imóvel), enquanto na cessão fiduciária ele figura apenas como cessionário do crédito (direito pessoal). Então, se a legislação prevê a existência dessas duas modalidades distintas de negócio fiduciário (alienação fiduciária e cessão fiduciária), pela mesma razão a exceção prevista pela Lei de Recuperação de Empresas deveria contemplar ambas as espécies. 

Mas o legislador não desejou assim. Excluiu da recuperação judicial apenas e tão somente o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis. Não se pode, portanto, interpretar essa regra, seja por analogia ou por extensão, para abranger, também, a figura do credor cessionário dos títulos de crédito, pois a interpretação restritiva das exceções é regra elementar de compreensão e aplicação das normas jurídicas. Quem não conhece a velha máxima pela qual não é permitido ao intérprete restringir naquilo que o legislador não o fez? 

Ora, a trava bancária já era prevista desde o advento da Lei nº 10.931. Então, a Lei de Recuperação de Empresas, que é posterior - de 2005 - deveria elencar expressamente também essa figura jurídica como uma das hipóteses de exceção ao regime legal da recuperação judicial. 

Inédita, nesse sentido, é a recente decisão dada pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), que proferiu um dos primeiros julgamentos que se tem notícia acerca da sujeição do credor garantido por cessão fiduciária de títulos de crédito aos efeitos da recuperação judicial. Ao julgar o tema, anotou com autoridade o desembargador Jorge Góes Coutinho que "se a legislação admite a cessão fiduciária tanto de coisa móvel quanto, como no caso em apreço, de títulos de crédito, deveria esta última hipótese também estar prevista, de modo expresso pela lei específica, como excluída dos efeitos da recuperação judicial, o que não é o caso". Essa linha de raciocínio faz ainda mais sentido quando se constata que o legislador excluiu apenas e tão somente as garantias fiduciárias recaídas sobre bens (leia-se "coisas") de propriedade da empresa em recuperação, tais como máquinas, equipamentos, veículos e imóveis. 

Tanto é assim que esse mesmo dispositivo legal ainda reafirma que prevalecerão seus direitos de propriedade "sobre a coisa". Ora, ao se valer do termo "coisa", a lei só faz reforçar o conceito de proprietário fiduciário nele inscrito para destacar que a exceção ao regime da recuperação judicial se destina apenas a assegurar o direito que o credor, na condição de proprietário que é, possui sobre coisas (bens móveis ou imóveis) cuja propriedade lhe foi transferida por alienação fiduciária. Nada de novo, pois tal orientação se compatibiliza com o próprio sistema da legislação falimentar, eis que a proteção apenas ao proprietário fiduciário, dada pela exclusão de seu crédito da recuperação judicial, nada mais é do que a antecipação de uma segurança - que ele já tem - de não ver sua coisa, que lhe foi alienada fiduciariamente, sujeita a uma eventual arrecadação na falência. 

Mas certamente essa não foi a intenção do legislador em relação aos créditos garantidos por cessão fiduciária de títulos. O ideal de superação da crise econômico-financeira das empresas, cuja oportunidade é dada com o processo de recuperação judicial, depende da disponibilização dos meios necessários: para cumprir tal missão, a lei deve ser aplicada para reconhecer que a sujeição dos créditos garantidos por cessão fiduciária ao regime da recuperação e, por conseqüência, a liberação das travas bancárias em benefício das empresas em crise, são medidas de fundamental importância para tornar possível essa superação. E viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira da empresa é permitir, nessa ordem de prioridades, a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores. 

Pensar o contrário é ver o que não está escrito na lei. Ou pior, é entregar o destino da nova lei a interesses egoístas das instituições financeiras, que querem apenas a recuperação do crédito bancário e não da empresa, voltando os olhos para a sombra do obsoleto e revogado decreto falimentar de 1945. 

Lincoln Fernando Pelizzon Estevam é advogado

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