04 de Setembro de 2008 - 13h:21

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A Justiça, o fisco e a garantia nas ações de execução fiscal

Por: Valor Online

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, afirmou recentemente que o direito não está nas ruas, mas na Constituição Federal. A advertência é oportuna nos dias que correm, em que princípios constitucionais vêm sendo desrespeitados por abordagens deturpadas e generalizantes. Uma dessas situações envolve a dívida ativa da Fazenda pública, expressão que designa o crédito que a Fazenda entende deter contra o contribuinte, e que, por gozar de presunção de legitimidade, habilita-a desde logo a pleitear no Poder Judiciário a satisfação da dívida sem a sua prévia confirmação.

É importante lembrar aqui alguns princípios constitucionais fundamentais: as garantias de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; de que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; e de que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. É a concretização da supremacia absoluta do Poder Judiciário, cuja decisão final será fruto do exame das razões e das provas apresentadas pelas partes.

Daí que há um aspecto fundamental, ocultado nessas abordagens superficiais: a chamada dívida ativa goza apenas da presunção de legitimidade. Presunção não é certeza, podendo ocorrer, como muitas vezes ocorre, de a Fazenda efetuar cobrança indevida. Exatamente diante dessa realidade, o sistema jurídico contempla um mecanismo próprio para viabilizar a contestação da exigência pelo contribuinte. A ação de embargos depende de prévia garantia, devendo o interessado privar-se temporariamente da disponibilidade de parcela de seu patrimônio correspondente ao valor cobrado para que possa se defender. Portanto, quem dirá se dívida há ou não é o Judiciário, e às suas decisões devem se submeter todos, inclusive a administração, que deve dar o maior exemplo de respeito à legalidade e às instituições do país.

Se é legítima a posição privilegiada da Fazenda pública, é inquestionável que o contribuinte que não reconhece a dívida fica em uma ingrata situação: só poderá buscar o Judiciário e defender-se com argumentos e provas depois de apresentar garantia integral. É errônea a obsessiva busca pela garantia em dinheiro. A privação pode trazer conseqüências à capacidade do contribuinte de arcar com suas obrigações, como o pagamento de fornecedores e empregados, e pode comprometer a própria geração de riqueza inerente à atividade desempenhada e que renderia frutos não só a ele, mas à comunidade que dele dependa e ao próprio fisco. E lembre-se que o contribuinte poderá, ao fim, ver reconhecida a inexistência da dívida. No mesmo sentido, a pretensão fazendária tão em voga, de penhora de dividendos distribuídos pelo contribuinte pessoa jurídica aos acionistas, representa outra dessas deturpações: os dividendos não pertencem à pessoa jurídica; constituem, por lei, obrigação legal dela em face de seus acionistas, e passam a integrar o patrimônio destes tão logo haja deliberação em assembléia geral quanto ao pagamento. Penhorar dividendos é penhorar bens de terceiros, e não do contribuinte.

Ainda sobre as garantias, negar legitimidade à fiança bancária, prevista em lei, é mais um ato de pura contestação sem conteúdo. A fiança bancária é onerosa ao contribuinte, que também se priva de seu patrimônio. Não havendo prejuízo à Fazenda, que deve ser efetivamente demonstrado, é direito do contribuinte, como decorrência inexorável da garantia constitucional de liberdade de iniciativa, identificar a garantia que seja mais adequada ao fluxo de seus negócios, a fim de que sua atividade não seja comprometida por uma dívida que ele próprio não reconhece. A fiança não atrasa a execução, se tiver que ser liquidada. A instituição financeira realiza o pagamento imediato no momento em que é intimada judicialmente, não se arriscando às gravíssimas e conhecidas conseqüências legais do inadimplemento, principalmente porque sua relação é com o contribuinte, de quem receberá o valor afiançado.

Daí porque, quem examine o tema com isenção, concluirá que tachar genericamente de mau-pagador ou inidôneo o contribuinte executado para a cobrança de dívida ativa é uma atitude precipitada, desarrazoada e sensacionalista. A rigor, totalmente injurídica. E verá que todo esse aparente paradoxo entre direitos contrapostos revela a importância da aplicação de um outro princípio constitucional, fundamental quando valores igualmente importantes estão em situação de aparente conflito: de um lado, a legitimidade de se imprimir celeridade à cobrança da dívida ativa, com mecanismos aptos à realização efetiva do crédito, que reverte em favor de toda a sociedade. De outro lado, e não menos importante, a garantia fundamental do cidadão à ampla defesa, com total submissão ao Poder Judiciário, imparcial e sereno. É o princípio da proporcionalidade, que impõe a limitação recíproca dos valores em jogo, à luz do caso concreto, de modo tal que se alcance uma situação harmônica de preservação mútua.

Por tudo isso é que todas as questões que envolvem a cobrança da dívida ativa só podem ser avaliadas sob a ótica da Constituição Federal e das leis que lhe devem respeito. Não é honesto afirmar que todo contribuinte executado pela Fazenda pública seja um real devedor. Pode ser ou pode não ser - e só quem tem a prerrogativa constitucional de dizê-lo, em caráter definitivo, é o Poder Judiciário. Não é também verdadeiro afirmar que essa ou aquela garantia é imprestável, sem que se analise o caso concreto, à luz do princípio da proporcionalidade e do menor sacrifício.

Há muito mais em torno do tema. O debate é necessário e enriquecedor, mas deve ser travado em sua exata perspectiva, que é exclusivamente jurídica. Generalizações e juízos precipitados desservem à Justiça e acabam por penalizar o bom contribuinte, pelo ilegítimo incentivo à arrecadação a qualquer custo, inclusive ao custo da capacidade de geração de riqueza nova para a sociedade e para o país.

Daniella Zagari, advogada, sócia do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados e mestra em direito processual civil pela Universidade de São Paulo (USP)
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