27 de Agosto de 2008 - 15h:04

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A Lei de Licitações e as mudanças nas normas contábeis

Os administradores não poderão comparar os balanços feitos com padrões distintos como se fossem iguais

Por: Valor Online

A mudança da legislação contábil brasileira que se avizinha conduz a uma interessante encruzilhada no que diz respeito aos efeitos que terá para as empresas que atuam perante o poder público. É uma verdadeira janela de oportunidades para um passo adiante e de grandes dimensões. Ou mais um imbróglio jurídico em nosso país.

Não é de hoje que se sabe que a Lei de Licitações - a Lei nº 8.666, de 1993 -, que regula a forma de contratar do poder público, requer uma revisão. A estrutura hoje vigente limita as alternativas do administrador e, não raras vezes, em prol da conferir a todos os administrados a oportunidade de contratar com o Estado, amplia em demasia as condições de habilitação, permitindo que empresas que não necessariamente reúnem condições de se candidatar aos contratos sejam declaradas aptas a apresentar propostas comerciais.

É o exato caso do previsto pelo legislador para a prova de boa situação financeira dos potenciais proponentes, a denominada qualificação econômico-financeira, cujos limites são estabelecidos pelo artigo 31 da Lei de Licitações. Ali, o legislador estabeleceu os critérios que devem ser acolhidos pelos administradores públicos para selecionar os candidatos que estão economicamente aptos a suportar as contratações propostas, evitando, assim, que o Estado contrate uma empresa que não conseguirá concluir o objeto contratado. Essa fase de procedimento contratual é particularmente importante para contratos de concessão, em que o futuro contratado deverá aportar recursos próprios na execução do objeto, ressarcindo-se não de pagamentos feitos pelo Estado em medições mensais, mas pela exploração do próprio serviço ou bem concedido, como nas estradas, ferrovias, portos, terminais rodoviários etc.

Ocorre que esses limites legais estão em desarmonia com a legislação comercial, societária e contábil, deixando de aproveitar importantes instrumentos que são necessários para que se tenha um retrato fiel da situação financeira dos candidatos à seleção pública. Note-se que, de acordo com a Lei de Licitações, o administrador público deve exigir "o balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social, já exigíveis e apresentados na forma de lei". Mas é sabido que a situação das empresas evolui rapidamente, sendo muito provável que seu balanço relativo ao último exercício social não mais revele sua real situação. A administração, assim, para atender à lei, ora afasta competidores aptos, ora contrata inaptos.

O problema, agora, tornou-se ainda maior. Além da apresentação do balanço relativo ao último exercício social, os certames usualmente exigem que a comprovação da boa situação financeira se faça pela apresentação de "índices contábeis previstos no edital e devidamente justificados no processo administrativo, vedada a exigência de índices e valores não usualmente adotados para correta avaliação da situação financeira suficiente ao cumprimento das obrigações decorrentes da licitação". Esses índices, cujo cálculo partem das demonstrações contábeis relativas ao último exercício social, são traduzidos, em geral, pela apresentação do índice de liquidez geral, índice de endividamento etc.

Porém, a Lei das Sociedades Anônimas foi recentemente alterada para absorver os padrões internacionais de contabilidade (IFRS, na sigla em inglês), que paulatinamente devem substituir o padrão hoje usualmente utilizado pelas empresas brasileiras - o "BR GAAP", terminologia usual das auditorias e consultorias contábeis para se referir à norma contábil brasileira, em alusão ao "US GAAP". Essa mudança trará uma enorme confusão para o cenários das licitações públicas já no ano de 2009.

Isso porque algumas empresas - sociedades anônimas, limitadas de grande porte ou com maior atuação internacional - já deverão ter a obrigação de migrar para o novo padrão no próximo balanço; outras o farão por opção, enquanto outras ainda se manterão nos padrões atuais, gerando uma substancial distorção nos números finais. Com rigor, como se poderá comparar a situação de "habilitada" por apresentar um "índice de liquidez X ou Y" no padrão BR GAAP quando o mesmo cálculo do mesmo índice projetado para a mesma empresa em um balanço feito com o padrão IFRS revelar resultado distinto?

É evidente que os administradores não poderão comparar os balanços feitos com padrões distintos como se fossem iguais, sob pena de gerar um resultado desconexo com a realidade financeira de cada potencial participante, impedindo o princípio básico de uma licitação, que é a competitividade real entre os proponentes. De outro lado, também não surge razoável que se exija de cada participante a apresentação de dois balanços, um adequado à legislação nacional (IFRS) e outro adequado aos costumes da administração pública (BR GAAP), eis que tal solução derivaria na apresentação de balanços não auditados, elaborados às pressas ou sob condições não ideais.

O que entendemos adequado é a criação de um grupo de trabalho por parte de cada ente governamental para encontrar um elemento de compatibilidade entre os dois índices, ou, então, que desde já se acene para todos os administrados que com o Estado queiram contratar a partir de 2009 a necessidade compulsória da migração de seus balanços para o novo padrão já no próximo exercício, de sorte a evitar o indesejável cenário de se comparar coisas diferentes a cada certame. Onde houver potencial de desequilíbrio e possibilidade de interpretação pelo agente público, infelizmente surgirá um terreno fértil para os desvios e os favorecimentos, devendo merecer adequada atenção de nossos legisladores.

Aí reside uma excelente oportunidade de atualizar e modernizar nossa legislação de licitações, tomando carona na nova norma societária e contábil, mediante a criação de obrigatoriedade das empresas licitantes seguirem integralmente o padrão IFRS, que, além de mais realista, certamente eliminará os diversos subterfúgios e distorções de valores que o atual sistema contábil traz. Como todo campo de oportunidades, trata-se de dar um passo adiante ou vários para trás.

Alexandre Frayze David e Alexandre Tadeu Navarro são, respectivamente, advogado sênior da área de direito administrativo e sócio do escritório Navarro e Marzagão Advogados Associados

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